Ouvimos falar sobre transcender nosso ego ou procurar
alcançar a pureza e os estados divinos além do desejo, além do corpo;
aprendemos que a iluminação é alcançada através da renúncia; acreditamos que
ela está em algum lugar além de nós mesmos, fora de nós mesmos. Infelizmente, a
noção de alcançar uma morada pura e divina ajusta-se muito bem a quaisquer
tendências neuróticas, medrosas ou idealistas
que possamos ter. Consideramo-nos impuros, indignos ou sem valor, podemos
usar as práticas espirituais e as noções de pureza para escapar de nós mesmos.
Seguindo rigidamente preceitos e formas espirituais, talvez esperemos criar uma
identidade espiritual pura.
Na Índia, isso é chamado de Algema Dourada. Não é uma algema
de ferro, mas sempre é uma algema.
O Mestre Tibetano Chogyam Trungpa Rimpoche advertiu sobre
esse "materialismo espiritual", aod escrever como podemos imitar as
formas externas da prática espiritual, seus costumes, crenças, cultura e
meditações, para fugir do mundo ou para proteger o nosso ego.
Para a maioria de nós que sofremos traumas e grande dor na
vida, a prática espiritual talvez pareça oferecer uma saída, um modo de
abandonar completamente os nossos problemas com esse corpo e mente, de escapar
à dor da nossa história e à solidão da nossa existência. Quanto mais glorificada a visão espiritual, mais ela se
adapta àqueles dentro de nós que não querem mesmo estar aqui. Nas profundezas
da escuta silenciosa, muitos discípulos da meditação descobriram que, desde o
começo, sua experiência de vida foi tão dolorosa que eles não queriam ter
nascido, não queriam estar aqui em um corpo humano. Eles procuram a
espiritualidade para oferecer a si próprios uma saída. Mas, para onde nos
levarão as noções de pureza, as noções de ir além ou de transcender nosso
corpo, nossos desejos mundanos, nossas impurezas? Levam-nos realmente à
liberdade ou apenas fortalecem a aversão, o medo e a limitação?
Onde será encontrada a libertação? Buda ensinou que tanto o
sofrimento humano quanto a iluminação humana são encontrados na sondagem do
nosso próprio corpo, com seus sentidos, com sua mente. Se não for aqui e agora,
onde mais nós a encontraremos?
Kabir, o poeta místico indiano, diz:
Amigo, espera pela verdade enquanto estás vivo.
Mergulha na experiência enquanto estás vivo!...
Aquilo que chamas "salvação" pertence ao tempo que
precede a morte.
Se não romperes tuas amarras enquanto estás vivo,
achas que os fantasmas o farão depois?
A idéia de que a alma se unirá ao extático
só porque o corpo apodreceu...
é fantasia e nada mais.
O que é encontrado agora, então será encontrado.
Se nada encontras agora, simplesmente acabarás com
um apartamento vazio na Cidade da Morte.
Se fazes amor com o Divino agora, na próxima vida
trarás na face o desejo satisfeito.
Temos apenas o agora; dia e noite temos diante de nós apenas
esse simples e eterno momento que se abre e desabrocha. Ver essa verdade é perceber que o sagrado e o secular não podem
ser separados. Mesmo as mais transcendentes visões da espiritualidade devem
irradiar-se através do aqui e agora e ser integradas à vida no modo como
caminhamos, nos alimentamos e amamos uns aos outros.
Isso não é fácil. O poder do nosso medo, os hábitos de
julgamento que existem dentro de nós estão sempre impedindo-nos de tocar o
sagrado. Muitas vezes, de modo inconsciente, fazemos com que nossa
espiritualidade seja trazida de volta para as polaridades do bem e do mal, do
sagrado e do profano. recriamos, sem saber, padrões do início da nossa vida,
padrões que nos ajudaram a sobreviver à dor, aos traumas e às disfunções
experimentados por muitos de nós quando crianças. Se o medo fazia com que nossa
estratégia fosse "fugir", talvez usemos a nossa vida espiritual para
continuar a fugir, agora alegando que renunciamos à vida. Se, quando crianças,
nossa defesa contra a dor era "um mundo de fantasias", talvez
busquemos uma vida espiritual cheia de visões para perder-nos nelas. Se
tentávamos evitar censuras sendo bons, podemos repetir isso tentando ser
espiritualmente puros ou santos. Se compensávamos a solidão e os sentimentos de
inadequação sendo compulsivos ou nos deixando conduzir, nossa espiritualidade
poderá refletir esses estados. O que termos feito é pegar nossa espiritualidade
e usá-la para continuar a dividir a vida.
As paredes dos nossos compartimentos são feitos de medos e
de hábitos, de idéias que temos sobre o que deveria ser ou não, sobre o que é
espiritual e o que não é. Como alguns aspectos específicos da nossa vida nos
esmagam, erguemos paredes para isolá-los. Na maioria das vezes, não emparedamos
os grandes sofrimentos universais do mundo à nossa volta, como a injustiça, a
guerra ou a intolerância, mas a nossa dor pessoal e imediata. temos medo das
coisas pessoais porque elas nos atingiram e feriram muito profundamente; são
elas que precisamos examinar para poder compreender esses compartimentos. Só
quando tomarmos consciência dessas grandes paredes no nosso coração é que
poderemos desenvolver uma prática espiritual que nos abra para a totalidade da
vida.
Um Caminho com o Coração (Jack Kornfield)
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